De joelhos não Fabiana Anastácio! Deus não quer os negros de joelhos.

Por: Maria do Carmo Paulino.
                                 
Fabiana Anastácio
Fabiana Anastácio / Fonte: O fuxico.
 
         Hoje eu não consegui dormi, me senti totalmente atravessada pela perda de uma mulher negra para o Covid-19, a Fabiana Anastácio. Sendo assim, minha reflexão aqui é a partir das questões étnico-raciais que nos atinge cotidianamente, é a partir dos nossos corpos negrxs que ocupam os mais diversos espaços nesta sociedade. E também é sobre as facetas que o racismo nos impõem.
Quem quer os negros "de joelhos" é a branquitude. Sim, é a elite branca deste país que querem os negros de joelhos subservientes aos seus pés, submissos as suas ordens e a serviço dos seus desserviços. Infelizmente no Brasil, igrejas evangélicas viraram um grande balcão de negócios e um trampolim para o “varejo da política” (Luís Roberto Barroso – Ministro STF). Nesta obra imoral do capitalismo, igrejas enriqueceram sem produzir um único produto. O dinheiro é a moeda corrente, que corre das mãos pobres de negros “desalentados”(IBGE) para as mãos dos brancos abastados, tudo isso por meio das ofertas. Os ofertantes precisam estar dentro das igrejas para manter ativo esse mecanismo cruel e desumano do capitalismo. Que barganha a fé como a mais valia. Os signos: Deus e Jesus, onde Deus é a palavra barganhada, Jesus é o verbo da barganha, tendo a música como base de produção e reprodução de sentidos. Com Deus e com Jesus se pode tudo, desde que você – homem negro e ou mulher negra permaneça fiel dentro da igreja e de joelhos.
Essa reflexão foi surgindo na minha cabeça nessa madrugada e confesso que nesta noite do dia 05/06/2020 não consegui dormir depois de saber, por meio do twitter, da morte de uma jovem cantora negra Fabiana Anastácio. Estava eu, pesquisando sobre o assunto polêmico que envolve a Fundação Palmares, quando percebo que a hastag #FabianaAnastacio estava entre os TTs do twitter. Então, acabei perdendo o foco da Fundação Palmares e fui pesquisar para saber quem era Fabiana. Fiquei encantada ao vê-la cantar e orar em sua igreja via Youtube. Que voz linda, quanto testemunho edificante. Fabiana, uma linda mulher negra, forte, cantora gospel, com uma voz potente louvando a Deus por meio do seu canto evangélico. Respeito sua religião e sua atitude é muito digna, sublime, tem a sua pureza e verdade, porém, aos meus olhos carrega uma certa ingenuidade.
Por meio do twitter conheci ontem que essa linda cantora negra nos deixou. O Covid-19 ceifou a vida e os sonhos de Fabiana Anastácio. No twitter, observei que a comunidade evangélica a via como uma preciosa cantora gospel, que evangelizou milhares de pessoas com a sua voz potente, contagiante e emocionante. Eu mesmo me sensibilizei e chorei muito ontem, assistindo seus vídeos, pensava na luta do povo negro afro-brasileiro e no contexto cultural que a escravidão nos deixou. O estilo de música que hoje chamamos de gospel, tem origem nas pessoas negras que foram escravizadas nos Estados Unidos, reforçando a criatividade do gênero musical Negro Spiritual.
Pesquisando o seu perfil no Youtube descobri que ela participa da igreja Assembleia de Deus de Santo André, município vizinho da grande cidade de São Paulo. Pesquisando mais a fundo, descobri que Fabiana Anastácio gravou em março de 2020 a música “De Joelhos”, vi que o clip no vídeo está muito bem produzido pela Todah Music. Esse vídeo me atravessou profundamente, é impactante, intrigante e perturbador por parecer uma afronta ao isolamento social por conta do Covid-19. Fico indignada porque esse vídeo é totalmente político. E nessa narrativa fica muito evidente que a igreja atua politicamente para convencer seus fiéis a não respeitarem as orientações da OMS. Vejam o vídeo e reflitam:

                                  
                                 Vídeo da música "De Joelhos". Fonte: Todah Music

O vídeo, apresenta uma belíssima produção, gravado dentro de uma igreja evangélica, ilustra a seleção estratégica que captura belas imagens, ele é protagonizado majoritariamente por pessoas negras: cantora principal é negra, banda só com pessoas negras, vocalistas negros, fiéis negros, ou seja, todos os atores neste clip são negros. A estética que predomina neste vídeo é negra e isso evidencia o público que eles querem atingir com este produto, que uni a estética negra com a mensagem sutil enunciada pela voz forte e potente que está enraizado na cultura negra. É o som instigante que em harmonia com o coral de vozes e melodias negras, me fez pensar: eles cantam para quem?
Percebi que o foco desta comunicação é atingir um público majoritariamente negro. Evangélicos ou não, o vídeo dialoga como as pessoas negras, que é representada pela maioria da população brasileira. E o que vem de embrulho mascarado nesta “belíssima” produção é o discurso do “NÃO ACEITEM O ISOLAMENTO SOCIAL E NÃO RESPEITE OS DECRETOS QUE FORAM EDITADOS” para conter a pandemia do COVID-19 conforme as orientações da Organização Mundial da Saúde – OMS. 
Esse vídeo foi estratégico, e ao meu ver, divergentes por dois motivos, expressando ai a "dualidade das relações de poder" (Michel Foucault). O primeiro por dar visibilidade e status quo por meio da música gospel a um grupo de pessoas negras, e isso dentro da comunidade evangélica é relevante e demonstra poder. O segundo, é que e ao gravá-lo, demonstra uma fortaleza que reveste uma ingenuidade profunda, um tiro no pé, se levarmos em consideração a biografia de Fabiana Anastácio, e de que ela por estar obesa fazia parte do grupo de risco elencado pela OMS. Esse vídeo exalta um posicionamento contrário ao isolamento social e deixa claro que Fabiana afronta a pandemia ao cantar que: “ameaçar com covas, não vai me intimidar”. A letra da música como um todo ilustra essa narrativa e a visão equivocada e politizada a respeito da pandemia. E o corpo negro presente, dando o tom desta comunicação que nos coloca enquanto pessoas negras, na fila para o abate. Muita ingenuidade esse enfrentamento feito pelo negro, mas quem está por detrás é o branco, como bem no ensina Frantz Fanon em "Peles negras e máscaras brancas". Eu fiquei triste com esse vídeo e quero seguir acreditando na ingenuidade de Fabiana, que deve ter sido orientada para cantar essa música neste contexto. Lamento que o Covid-19 tenha atingindo-a ceifando sua vida e silenciando de vez a sua voz.
Essa ironia do destino que contrariou o discurso cantado por Fabiana, reforçou o pensamento contrário de que Deus não quer o negro de joelhos e nem totalmente alienado a sua cultura e a história do seu povo, tampouco em relação aos meandros dos contextos políticos que são impostos socialmente e mascarados para nos dizimar em massa.
Fabiana trazia em seu belo nome composto o Anastácio que significa “o ressuscitado” (Dicionário de nomes próprios), de origem grego Anastácios, a partir de Anastasis, que decorre pela união dos elementos Ana que significa “para cima” e Stasis que quer dizer “em pé” reforçando o sentido de “o ressuscitado”.
Percebo que a música “De Joelhos”, era uma estratégia para manter os negros ativos dentro das igrejas, ou seja, circulando pela cidade e desrespeitando assim, o isolamento social que é segundo a OMS, a única maneira de evitar a circulação do vírus, e assim preservar a vida das pessoas. Porém, na sociedade brasileira há um grupo de pessoas que não acreditam na pandemia e não querem respeitar o isolamento social. E quem são os maiores interessados?  É a elite branca endinheirada que investe no atual Presidente da República para incutir na cabeça do seu eleitorado que o Covid-19 é só uma gripezinha. Esse discurso equivocado de "gripezinha" foi apoiado por muitos pastores evangélicos. E não é à toa que o clip para a música “De Joelhos” apresenta essa alta qualidade na produção e na estética fortemente marcada e direcionada para a população negra. Fabiana Anastácio ingenuamente abriu a sua própria cova, ao reforçar o discurso e a imposição da elite branca sobre os negros.
Essa elite é tão perversa e maldosa, que nos molda subjetivamente aos seus interesses mais cruéis. O cenário para dizimar os negros só poderia ser figurativizado por pessoas negros, neste contexto Fabiana Anastácio foi peça chave para entoar a sua voz, o seu charme e o seu carisma para convencer os negros e negras a permanecerem de joelhos?!! Dentro das igrejas? E por que não de joelhos em suas casas nesta quarentena? E por que não tem brancos de joelhos no vídeo?Não não pode ter, teve que ser:
 _ Negros de joelhos dentro das igrejas, para vencer o Covid-19.
_ Negros de joelhos dentro das igrejas para ter a cura.
_ Negros de joelhos dentro das igrejas para conseguir um emprego.
_ Negros de joelhos dentro das igrejas para que as portas se abram para a paz na família, para o retorno do marido, para o fim do vício. 
É só nas famílias negras que existem estes problemas?
Essa música rodeia, rodeia, martela a nossa cabeça e de fato, atinge em cheio as aflições que a população negra vem passando com a falta de emprego, a falta de acesso à Educação, Moradia, Saúde, entre outros recursos básicos. E nessa perturbação mental as pessoas saem de suas casas e colocam suas vidas em risco à contaminação pelo Covid-19.
No Brasil a população negra é a maioria, e por isso, é urgente a necessidade de se romper com essas correntes que alienam a nossa população, que usa-nos,  moldam-nos aos interesses da classe dominante e nos achatam inertes à condição de subservientes a esta elite dominante que é branca e racista. Nós negros somos seres humanos altamente criativos, estamos resistindo ao racismo estrutural que a todo instante ceifa a vida de uma pessoa negra, seja ela criança, jovem ou idosa, toda essa população está vulneravelmente desassistida social e economicamente desde a formação deste país. Como se não bastasse o genocídio da juventude negra, o encarceramento em massa da população negra, eis que prevejo uma nova estratégia de oprimir e ceifar a vida de pessoas negras. A professora Petronilha já havia nos alertado sobre as facetas do racismo.
Assistindo ao vídeo “De Joelhos” aprendi que é urgente a necessidade de subvertemos as “facetas do racismo” (Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva - UFSCar) que usa o negro para dizimar subjetivamente o seu próprio povo negro. Aprendi com a passagem da Fabiana Anastácio, que nós negros e negras temos que permanecemos “em Pé” como está nas entrelinhas do seu próprio nome. Aprendi que devemos desconfiar dos discursos impostos pelas instituições religiosas ao qual escolhemos e nos batizamos ou fomos batizados para professar a nossa fé. Aprendi que a fé não pode ser cega e nem impor a corrente do medo que aprisiona e aliena. Aprendi que a fé tem que ser libertadora e provocar reflexões construtivas em prol da vida e não da morte. Aprendi que as relações humanas são relações de poder que precisam ser subvertidas de baixo para cima, com os negros e negras “em Pé”, vivos e sem medo para desfrutar com dignidade as riquezas deste país que ajudamos a construir.
Portanto, negros e negras deste país, orar e vigiar sim e desconfiar também do que te falam como uma "verdade".  A nossa verdade, independente de crença e ou religião, é que o povo negro sempre lutou pela sua vida, para permanecer vivo. Vivo na fé. Vivo na Resistência. Vivo na esperança. Vivo na história.
Negros de joelhos não, Negros em Pé!
Á Fabiana Anastácio (in memoriam), gostaria de externar que amei conhecer o seu canto e a sua voz. E agradecer por perturbar o meu sono e me fazer vir aqui para escrever o que senti, muito obrigada... Siga em Paz 🎶

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Para uma futura reflexão e estudo deixo aqui a letra da música "De joelhos"

► De Joelhos 

Estão querendo armar laços e ciladas 
Fazer decreto pra eu parar na caminhada 
Pra me provar como provaram Daniel,
Pois seu desejo é me ver longe do céu.
Estão querendo cessar nossa oração 
Incomodados com a nossa comunhão 
E no congresso foram fazer o edito 
Para oprimir e calar o povo escolhido.
Mas a igreja não recua vai seguindo em oração 
Quanto mas é oprimida, afligida, perseguida  
Persevera em oração.
E Deus, ouve do céu e traz resposta pro seu povo.
Livra o crente da cova e ás vezes faz um charme 
Passeando entre o fogo.

Podem fazer decreto pra o rei assinar 
Ameaçar com covas não vão mim intimidar 
Não troco minha fé não cesso de orar 
Daqui não vou sair não deixo meu lugar 

Podem preparar a cova, leões as jaulas
Podem até arma forcas ou mesmo fornalhas 
Sete vezes aquecidas, isso não mim intimida 
Pois o Deus a quem eu sirvo 
É quem de todas me livra 
Pois ele quem me, guarda me protege, me ampara 
Quem vigia noite dia, 
Dia e noite fiel guarda.
Ele é minha salvação 
Nele eu tenho proteção 
Pois eu vivo em oração.

Eu não cesso de orar, 
Eu não paro de orar, 
Faço como Daniel podem me ameaçar 
Pois querem me ver com medo 
Querem saber o segredo 
Porque sou vitorioso 
Mesmo eu tendo defeitos 
Meu segredo é joelhos, joelhos, joelhos 
É que eu ando de joelhos, joelhos, joelhos 

Se quer resposta é de joelhos 
A presença é de joelhos 
Livramento é de joelhos 
A saúde é de joelhos 
Não existe outro segredo 
É joelhos, é joelhos, é joelhos.
Tua cura é de joelhos 
A família é de joelhos 
Essa porta de emprego só se abre de joelhos 
O teu filho desviado, teu esposo afastado 
Vai se voltar de joelhos.
Vai vivendo em oração, prosseguindo em oração 
Vai seguindo com Jesus em constante oração 
Guarda contigo o segredo 
Prosseguindo de joelhos 
Tu serás um campeão.

► Todos os direitos reservados à Gravadora Todah Music.


Comentários

  1. Maria do Carmo Paulino nos alerta "...minha reflexão aqui é a partir das questões étnico-raciais que nos atinge cotidianamente, é a partir dos nossos corpos negrxs que ocupam os mais diversos espaços nesta sociedade. E também é sobre as facetas que o racismo nos impõem."

    Tais questões me angústiam e me impelem a pensar que nos situam na posição ambivalente:- de luta pela sobrevivência e na administração capitalista serem os corpos e mentes usados como instrumento de controle social e de arma contra si mesmos.
    Anastásia expressa o amor sublime em sua devoção e comunhão com Deus e a Igreja em seu canto, mas denota ignorar seu lugar na história da humanidade e dos negros, se mistura e contempla os interesses dos homens sem qualquer crítica fora da Bíblia, e morre por isso, pelo golpe da foice invisível do capitalismo, outrora colonialismo, imperialismo... Expõe se a não representar a luta do povo negro-afrodescendente dentro dos interesses capitalistas. Anastásia ocupou um lugar digno por entre abençoados e violados no mundo dos gananciosos. Denota que enquanto mulher negra nesse lugar almejado, viveu a fé (não a religião assim se identificam os evangélicos), porque através da fé em Deus a humanidade pode manter mesmo que ilusóriamente alentar seus escolhidos unidos. Porém devido a difícil escravidão, exclusão das condições dignas de sobrevivência e apagamento da memória dos negros, a história oculta de elaboração da Bíblia, a auto alienação, a auto submissão, a escravidão voluntária não possa ser interpretados em conhecimento e a força da razão para ter sido também uma lutadora social, se defender da opressão e da Covid-19 ...a fé a levou... mais pela obediência cega no criador definido na Bíblia (capitalista oculto)...fé entrega, sublimação...amor como arma existencial e de sobrevivência ( congecturamos pelos dados coletados por que já não há como indagá-la).
    Urge, também por seu canto, voz e morte, reconhecermos a história dos negros para redefinir a fé, o amor a Deus, e o amor ao próximo ...como força para o enfrentamento das desigualdades e da violência social frente aos intermediários do poder capitalista, instituições, leis, autoridades.
    Abraços guerreiras: Maria do Carmo e Anastásia. SP-09.06.2020

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